domingo, maio 19, 2024
Belo HorizonteCidade

Moradia como produto contribui para o esvaziamento de Belo Horizonte

Especulação imobiliária, crescimento do déficit habitacional e do número de imóveis vazios contribuem para o esvaziamento populacional da cidade de Belo Horizonte.

Davison Henrique

O Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022, divulgou dados a respeito do número populacional dos municípios, que ajudam a demonstrar um problema crônico enfrentado pelas cidades de todo o país, sobretudo em Belo Horizonte, que é a questão da moradia. De acordo com o Censo, a capital mineira teve uma diminuição de 59.591 moradores, na contramão do que se espera do crescimento urbano de uma metrópole.

O déficit habitacional está no cerne do problema. Segundo dados do levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro (FJP) em 2019, foi revelado que o número do déficit habitacional chega a ser mais de 5,9 milhões. Dessa forma, é preciso problematizar o fato de que há uma grande quantidade de pessoas sem o direito fundamental do acesso à moradia, uma questão que não se reduz somente a uma pauta social, mas também uma problemática que impacta diretamente na composição urbana das cidades.

Minas Gerais é o estado com o maior número de déficit habitacional, chegando a 500 mil, e Belo Horizonte é um dos maiores expoentes da problemática. O êxodo urbano que atinge a cidade tem como consequência a dificuldade que a população enfrenta em conseguir moradia no município, sendo assim, forçada a migrar para outras áreas da região metropolitana a fim de encontrar um lugar para morar.

A moradia é o princípio da construção da dignidade humana. É por meio dela que o cidadão estabelece um ponto de partida e pode, a partir daí, se inserir na sociedade com seus direitos e deveres. Dessa maneira, é preciso pensar o papel do poder público municipal na promoção da habitação, uma vez que a Prefeitura é a instância de poder mais perto da população. Dentro da perspectiva municipal, Viviane Zerlotini, doutora em arquitetura e pesquisadora na área ‘Produção do Espaço Urbano no Brasil’, ressalta que:

É importante a gente lembrar que apesar de todas as políticas públicas que existem para a habitação, para garantir o acesso à habitação, nenhuma delas conseguiu resolver até hoje a questão do déficit habitacional, considerando que 90% do déficit habitacional se localiza nas classes sociais que têm renda de zero a três salários mínimos”.

Umas das principais tentativas de combater o problema da moradia urbana no país foi através do Estatuto das Cidades, Lei Federal n 10.257/2001. O Estatuto foi criado com o objetivo de prover mecanismos para que os municípios pudessem promover o desenvolvimento urbano de sua área em vários setores, inclusive o de habitação. Ele também é responsável por permitir que o prefeito possa alterar o orçamento do município visando o desenvolvimento de políticas urbanas de interesse da população por meio do Plano Diretor da cidade. 

Para além do Estatuto das Cidades e o próprio Plano Diretor, Belo Horizonte também conta com a Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (Urbel), responsável pela concretização da Política Municipal de Habitação Popular. A empresa é de economia mista, foi fundada em 1983 e é uma realização dos movimentos populares que lutam pela moradia no município, sobretudo para famílias de baixa renda.

Apesar dos mecanismos citados contribuírem para a criação de habitação no decorrer dos anos, eles se mostram como artifícios paliativos de um problema que se mostra cada vez mais crescente, visto os números divulgados do déficit habitacional. A moradia não é vista como direito básico, mas sim na perspectiva de produto. Por consequência, na lógica de mercado, o poder público municipal permite a prática de especulação imobiliária, que lucra com imóveis vazios ao invés de utilizá-los para criar habitação urbana.

Especulação imobiliária impacta na composição urbana da cidade

O IBGE divulgou que, ao todo no país, são mais de 11 milhões de casas e apartamentos vazios, uma proporção de 13 domicílios vagos a cada 100, um aumento significativo quando se olha a última divulgação, feita em 2010, que marcava nove a cada 100. Esse número é quase o dobro da estimativa do déficit habitacional do país.

A especulação imobiliária é uma máquina presente em quase todas as metrópoles do país e consiste na compra de imóveis, comumente por grandes empresas, deixando-os sem uso, com o único objetivo de aguardar sua valorização com o tempo. Muitas vezes pertencentes a latifúndios urbanos, essa prática causa prejuízo para a composição da cidade, uma vez que esses imóveis em primeiro lugar acumulam diversas dívidas em impostos e principalmente ocupam espaços do que poderia se tornar algo que de fato serve a população, tal como moradia. 

Em Belo Horizonte, somente na Av. do Contorno são mais de 80 edifícios e casarões ociosos. Na Av Afonso Pena há o antigo hotel Othon Palace; na Rua da Bahia, o prédio do Senac; o antigo banco Hércules, na Rua Espírito Santo, estes dois últimos atualmente são ocupações. A grande maioria desses imóveis já não cumpre mais função social e, portanto, faz-se necessário cumprir a Constituição. Por isso, a cidade possui várias ocupações, movimentos sociais que buscam o direito à moradia e ao mesmo tempo fazem cumprir a lei na ausência de atuação eficaz da Prefeitura.  

O poder público municipal possui mecanismo para combater a especulação imobiliária. O próprio Estatuto das Cidades permite que seja cobrado IPTU progressivo a estes imóveis e até mesmo a desapropriação e sanção. Porém esses mecanismos não são de fato aplicados, uma vez que os imóveis continuam com dívidas gigantescas e abandonados, a partir deste contexto, Eduardo Bittencourt, mestre em arquitetura e  consultor especializado nas áreas de planejamento urbano municipal, diz que:

A cidade brasileira, ela é produzida através da dinâmica privada. Apesar da gente ter um Estado forte, uma política urbana consolidada, a dinâmica se dá a partir da propriedade privada e da produção privada, a partir das relações de mercado. Todos nós acessamos a moradia e a cidade pagando, através de uma relação de consumo. Isso, inclusive, é financiado pelo poder público.”

Dessa maneira, Zerlotini pontua a natureza da gestão pública de Belo Horizonte, ressaltando a o histórico de predominância de governos de cunho neoliberal e por consequência gestores com formação mercadológica que utilizam do aparato do Estado para favorecer aliados empresários em troca de capital político e enriquecimento do próprio patrimônio.

O problema da gentrificação em Belo Horizonte

Outro problema decorrente da especulação imobiliária como anomalia urbana, é o processo de gentrificação dos bairros da cidade. A gentrificação é um processo de desocupação de moradores originários de uma região e por consequência também de sua cultura através da transformação urbana do espaço, fazendo com que ela passe a ser ocupada por classes sociais mais altas. 

De acordo com Manoel Vieira, coordenador nacional e de Minas Gerais do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), a fundação de Belo Horizonte por si só se pauta em um processo de gentrificação, uma que vez que, como cidade planejada, sua origem não se deu de forma orgânica, fazendo com que a população que antes residia na região fosse forçada a migrar para a construção de elementos do município, tal qual o Palácio da Liberdade. O processo de gentrificação está presente desde sua formação e continua se perpetuando até os dias de hoje, contribuindo para o processo inicial de esvaziamento da cidade e também de perda de um legado cultural. 

A região metropolitana sofre muito com a gentrificação, principalmente as áreas que fazem fronteira direta com os bairros de Belo Horizonte. O Vetor Norte sofreu grandes transformações no decorrer dos últimos anos com a construção da Linha Verde e também da Cidade Administrativa, resultando na chegada de um perfil populacional mais abastado e também causando o aumento no preço dos aluguéis e imóveis na região. Do outro lado da cidade, na região Centro-Sul, houve a expansão do bairro Belvedere chegando até o município de Nova Lima onde originou uma tendência de construção de condomínios de luxo.  

Luciana Teixeira de Andrade, professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas, é uma das autoras, junto com Jupira Gomes, do artigo intitulado Urban policies, mobility and gentrification in two neighborhoods of Belo Horizonte  (Políticas urbanas, mobilidade e gentrificação em dois bairros de Belo Horizonte). Nesta obra, é possível compreender como o processo de gentrificação vem ocorrendo no bairro Anchieta, que sofre forte modificações por fazer parte da região Centro-Sul, onde se concentram os bairros com maior concentração de classes mais altas da cidade.

O bairro Anchieta, recente em fundação comparado a outros de Belo Horizonte, sofre forte pressão dos bairros mais ricos ao redor, concentrados na região Centro-Sul / Créditos: Reprodução-Artigo  Urban policies, mobility and gentrification in two neighborhoods of Belo Horizonte
O bairro Anchieta, recente em fundação comparado a outros de Belo Horizonte, sofre forte pressão dos bairros mais ricos ao redor, concentrados na região Centro-Sul / Créditos: Reprodução-Artigo Urban policies, mobility and gentrification in two neighborhoods of Belo Horizonte

Em contraste, o artigo também apresenta o caso do Santa Tereza, umas das regiões mais tradicionais de Belo Horizonte e com fortes raízes culturais importantes para a história da cidade. No bairro, as seguintes tentativas de gentrificação do espaço foram barradas devido a organização do moradores em apelo ao poder público para a proteção da área e também o tombamento de cerca de 300 imóveis, o que configura o Santa Tereza como patrimônio de Belo Horizonte e aplica certas restrições e impede que ocorra modificações prejudiciais a região.

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